"O pedreiro, o sindicato e o sonho"
Revista Metrópole publica relatos de sindicalista sobre o golpe de 64
Na escola, Pedro não passou do quarto ano primário. Ele largou o caderno para aprender o ofício. Aos dez anos, o menino ganhou um kit com colher de pedreiro, martelo, metro, nível e novelo de linha. E estreou as ferramentas em uma obra que o pai dele, seo André, tocava na Vila Rialto, ali pela Vila Industrial. A paredinha que o garoto ergueu ao lado do armário ficou fora de prumo e ele tomou uma dura danada, com direito a safanão, porque o paizão era pedreiro dos bons e não aceitava serviço malfeito. Educação à moda antiga, mas valeu. O moleque se aprimorou e aos 14 anos já era mestre de obras.
O rapaz habilidoso, que tinha três irmãos pedreiros, despontava como empreendedor da construção civil. Antes de virar patrão, Pedro trabalhou como empregado e, fanático por livros, apaixonou-se por filosofia e ciências sociais. Virou sindicalista e, na juventude engajada, adotou o discurso do proletariado no poder, cartilha de Karl Marx.
Hoje com 85 anos, Pedro Segundo Simionato é um senhorzinho de cabelos brancos e mora no primeiro andar de um edifício de apartamentos perto da Rua dos Alecrins, no Cambuí. Ele vive com Isaura, de 82 anos, primeira e única paixão de sua vida. Pouca gente pela vizinhança, no entanto, imagina que o cidadão foi uma das lideranças sindicais pioneiras na cidade. Mais do que isso. No comecinho dos anos 60, ocupou a direção do Plenário Sindical, que reunia todas as categorias profissionais regulamentadas e organizava seminários com lideranças operárias jovens e estudantes.
O leitor já deve imaginar que a vida do homem virou de pernas para o ar em 1964, quando os militares derrubaram o governo e instalaram a ditadura. Naquele dia, Pedro estava no Rio e pretendia protocolar pedidos de pensão em benefício de oito viúvas de pedreiros campineiros. Lá ficou sabendo da "revolução deflagrada" e viu urna multidão de sindicalistas desesperados, reunidos no quarto andar do velho Sindicato dos Aeroviários. Viu quem devia reagir contra o golpe fugindo em debandada, lotando o elevador do prédio. Cada um queria salvar sua pele. Sem dinheiro, só com a roupa do corpo, o campineiro não podia tomar o ônibus para Campinas porque a rodoviária estava sitiada. Soldados davam rajadas de metralhadora para o alto comemorando a queda de João Goulart. Pedro foi acolhido pelo dono do hotel onde se hospedava, perto dos Arcos da Lapa. Inconformado com o golpe, o empresário ofereceu hospedagem gratuita ao sindicalista enquanto as tropas continuassem na rodoviária. Pedro embarcou naquela mesma noite de volta a Campinas. Chegando, tornou um táxi no ponto da João Jorge.
Pediu ao motorista que circulasse pela Barão de Jaguara e viu homens de farda na porta cio Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil. Ele estava sendo procurado e, então, se escondeu uns dias no sótão da casa de um irmão. Depois, buscou refúgio na fazenda da família de um amigo, em Dois Córregos, mas a porteira estava fechada. O amigo Teotônio Monteiro de Barros, que faria carreira brilhante corno advogado, havia sido enxotado pelos parentes. Foram seis meses na clandestinidade, longe de casa, sem ver a mulher. O pesadelo só acabou quando ele, cansado e temendo pela segurança da família, entregou-se à polícia. Não sofreu tortura, nem foi desrespeitado. Passou uma noite só na cadeia, mas perdeu para sempre o cargo de presidente do sindicato e nunca mais fez militância ideológica. Episódios como esse Pedro lembrou quando foi entrevistado por Virgílio Abranches para o livro A Princesa e o Golpe, com relatos sobre Campinas naquele episódio de 64.
Carreira política? Antes do golpe, Pedro foi convencido por uma legenda trabalhista a disputar a eleição para a Câmara. Suplente, chegou a assumir uma cadeira durante 18 meses, mas o que viu e ouviu por ali o desencantou. "Ainda que possa existir político bem-intencionado, ele é refém de uma estrutura viciada, comandada por gente que adota um discurso na campanha, mas no cargo defende o próprio bolso", fala. "Quem é honesto sofre." Desgostoso com o golpe e desiludido com a postura de velhas lideranças trabalhistas, voltou a ser pedreiro, abriu sua construtora, viu crescer os cinco filhos, 14 netos e um bisneto. Hoje, vive em paz, só com Isaura. Ideologicamente, porém, ele não mudou. Continua marxista porque o marxismo, explica, não depende de fronteiras, governos autoritários, repressão. "É possível uma sociedade solidária, com os povos trabalhando, produzindo e compartilhando", diz. "É utopia para muitos, mas eu vou morrer acreditando.